Remorso, s. m. Manifestação pungente da afetividade humana que nos censura um ato que não devíamos praticar.

A volta da primeira visita a terra natal é traumática. Remorso, essa é sem dúvida uma palavra que define bem esse sentimento. Eu ainda tinha dificuldades em retornar ao curso, não queria assistir televisão, não queria falar com ninguém, não queria sair na rua. Apesar de estar achando lindo a natureza estar de volta, eu não tinha vontade nenhuma de ir lá.

Eu me obriguei a sair, contrariada, mas eu precisava. E me culpei por isso. Eu queria mesmo era estar papeando com a minha mãe sobre qual iria ser a nova tentativa da Nina de se vingar da Carminha, estava doida pra ver logo as Empreguetes fazendo sucesso e vivendo uma vida de madame... mas eu não podia (ou pelo menos não devia), e eu me culpava por isso...

Eu senti saudade do calor, dos temperos da comida, do suco de carambola, do vulco vulco na rua, do vizinho ouvindo no último volume o novo hit sertanejo enquanto lavava o carro e principalmente, de acordar todos os dias e ter minha mãe ali me contando alguma historia enquanto eu tomava café... sentia falta de coisa que eu não havia sentindo quando vim pra cá pela primeira vez.

Eu estaria ficando depressiva? Eu havia sido excessivamente mimada pela minha mãe? Eu estava exagerando?

E eu me culpava tanto! Eu sentia um tremendo remorso por estar assim, corpo aqui, pensamento lá. Não conseguia voltar completa pra minha vida aqui, queria ouvir português na televisão, queria ver novela, as piadas do Louro José e o Silvio Santos dando dinheiro. Cedi a pressão, tive que fazer isso, eu mesma me obriguei a voltar a realidade. Voltei, mas voltei contrariada, como quem aceita as desculpas mas continua magoada. A obrigação de ser forte calava os outros sentimentos. Minha culpa, minha tão grande culpa...

E os dias se passaram...

Até hoje eu ainda sentia essa culpa, até hoje. Quando, conversando com amigos que estão aqui por mais tempo e já viveram essa experiência da volta, descobri que esse sentimento doido de vontade de ir querendo ficar, de corpo aqui, pensamento lá, é normal no coração de todo imigrante, respirei aliviada. Descobri que a volta é difícil pra todo mundo, principalmente a primeira volta. As lembranças são muito vivas, muito presentes. Nesse momento extremo dessa briga sentimental dentro da gente, nessa confusão toda, renegamos o que é ruim e conseguimos pensar apenas no que é bom e na saudade.

Foi muito bom saber que todo mundo passa por isso, que eu sou normal, e que não estou passando por nenhuma depressão pós-Brasil. Que essa sensação inexplicável, desconfortável e culposa é apenas uma consequência da explosão de sentimentos que acontece no coração da gente. E principalmente, que eu não preciso me resignar.

E eu, bom... eu agora respiro aliviada, sou mais humana. Sei que isso tudo vai acontecer porque tem que acontecer, e que com o tempo, a gente aprende a entender e lidar com tudo. Me sinto aliviada, entendi que eu não tenho culpa de nada e tão pouco devo me sentir assim. Eu não preciso ter remorso, eu não vou desaprender, eu não vou perder, muito pelo contrario... eu posso viver tudo, dos dois lados, sem medo, eu vou sempre estar ganhando. Talvez abrindo mão de algumas coisas aqui ou ali, mas afinal, a vida é assim mesmo, não é?  Abrimos mão de algumas coisas por outras. Algumas são mais difíceis de serem superadas, como a saudade, mas é possível aprender a viver com isso e essa na verdade, é a primeira lição do imigrante... O melhor mesmo é entender essa condição humana e não se sentir sufocado por ela, apenas aceitar...

Eu nem iria mais falar sobre isso, mas escrever sobre o assunto ajuda a entender os meus sentimentos, e quem sabe até pode ajudar futuros imigrantes a se prepararem para essa montanha russa de emoções...

E mudando rapidamente de assunto, a novela tá boa, né? Vocês também estão acompanhando? Rsrs
=)

Dor nas costas, torcicolo, câimbras nas pernas, pé inchado, eu sei, isso parece PIC (a Porcaria da Idade Chegando), mas não é... isso é uma singela viagem de Montreal para o Rio de Janeiro baldeando pelos Estados Unidos num voo da US Airways.

Só quem viveu essa maravilhosa experiência sabe que as 12 horas de busão entre Rio e Colatina dá de 10 a 0 naquele avião pau-de-arara que "puxa" a brasileirada que esta ouriçada em fazer umas comprinhas nos EUA.

Caminho de ida: lá no aeroporto do Tio Sam, brasileiros eram detectados a distância, mesmo que eles não falassem uma única palavra, mas pelo tamanho das bolsas de compras e das pelúcias da Disney que iam a tiracolo, dava pra saber que se tratava de puro Tupi-Conterrâneo.  Acho até que os únicos que não falavam português naquele voo era a tripulação.

Depois dessa maravilhosa experiência de confinamento no avião da US, qual foi a primeira coisa que fiz ao chegar no aeroporto? Exatamente o que todo mundo faz, fui ao banheiro. Depois de todas as dores citadas acima, um par de olheiras e um cabelo desgrenhado, eu realmente precisava de um banheirinho sem turbulência. E foi lá, na intimidade da casinha, que a ficha caiu, foi lá que eu tive o primeiro choque de realidade.

Alguém na cabine ao lado tascou um telefone num sei de onde, e começou a falar bem alto: 

- E aê beleza? Se liga, cheguei agora, tô no aeroporto, vai chegar aqui pá me pegar que horax? 

(até ai tudo bem, quem nunca atendeu um telefone no banheiro, não é mesmo? Podia esperar sair, lavar a mãozinha, secar bonitinha e então fazer a ligação? Claro, podia. Mas e se a pessoa está com pressa, né mesmo? Tem um monte de coisas ainda pra resolver, o transito, coisa e tal... É por causa da minha imensa compreensão é que a pessoa não pode me condenar por imaginar ela desabotoando a calça, fazendo malabarismo pra não respingar na perna, a bolsa pendurada no pescoço e o telefone entre a orelha e o ombro, num verdadeiro contorcionismo na caixa de 25,7 cm quadrados. Certo??? Mas acontece que o telefone não estava entre a orelha e o ombro)

Piiii (o barulho do telefone)

- Poo, chegô? To saindo daqui, chego aí rapidim, me expera na saída porrrtão doix. (respondeu uma segunda voz em alto e bom tom como se estivesse ali mesmo em pessoa, compartilhando o quadradinho)

Piiii (outro piiii)

- Maix e aquela parada lá, ta resolvida.

Piiii (de novo)

- Poo, exquenta não, aconteceram unx lance ae, maix deixa que te conto pessoalmente. (ahhhh, conta, conta, agora quero saber)ae, Sandim tá fazendo um churraxco na casa dele no findi, tu vai?

Piiiii (só faltou o câmbio, desligo)

Como eu havia me exquecido esquecido, meu pai? Aqui tem gente que fala ao telefone e incluí todo mundo na conversa usando esse negócio aí de rádio... É, caiu a ficha, voltei... essa é minha vida, esse é o meu mundo...

(e o que aconteceu gente? qual foram os lances que atrapalharam a parada??? estou aqui sem saber até agora, isso não se faz... hahahahahahahaha)

Mas o choque realístico não parou por aí. Toda hora eu era surpreendida pelas gargalhadas dos que atravessavam a rua e me viam lá do outro lado esperando o sinal fechar para atravessar bonitinha na faixa. Também era um grande susto no coração toda hora que um motoqueiro naturalmente se metia no meio dos carros em plena Avenida Brasil. Isso sem falar do porteiro, que contava como fulaninho-de-tal foi assaltado porque deu a bobeira de atender o telefone na rua, mó vacilão, ae.

E quando, num intervalo da tv em plena tarde, aparece uma mulher nua sambando? Tem coisas que a gente só se dá conta quando está vendo de fora. Não que uma mulher de tapa-sexo nunca tivesse me agredido, mas é muito mais chocante quando você esquece que isso existe e de repente jogam isso na sua cara, no meio da tarde. Assim fica mais fácil entender porque tudo relacionado ao Brasil é sexual na cabeça dos estrangeiros. Essa é a imagem que o Brasil vende dele próprio. Choque de realidade, choque de realidade...

Assistir ao jornal local já era coisa desacostumada na minha cabeça. Assuntos variados que corriam entre assassinato, roubo, acidente no trânsito e tráfico de drogas (ou tudo isso junto e misturado). Durante minha estadia em Colatina, eu pude ver o jornal local noticiar o assassinato de um vizinho, que ao que tudo indica, reagiu após ter reconhecido o assaltante. Era um jovem de 36 anos, filho da minha professora primária, que estava de malas prontas para viajar no dia seguinte. Nada mais assustador. Nada mais inacreditável. Nada mais chocante.

Enquanto isso no Fantástico, o especialista em segurança ensinava como se defender dos assaltantes. Dicas quentes de como evitar usar a bolsa de marca famosa, muito visada pelos ladrões, de não colocar cadeado na mochila, porque isso indica que há algo de valioso ali, de nunca atender o telefone no meio da rua, não usar cordão, pulseira, relógio nem pasta de laptop (põe no saco de pão e reza pro assaltante já ter tomado café da manhã). Dicas de qual é a melhor maneira de sair com o carro: entrar, travar a porta, ligar o carro, engatar, sair com ele e então só depois disso tudo, colocar o cinto de segurança. Esse é o embarque seguro! Na hora de estacionar o carro, já vai juntando tudo que for levar: bolsa, celular, cd... estaciona e sai numa ação de 4 segundos. Fenomenal. Principalmente a parte de juntar as coisas antes de estacionar, ou seja, enquanto está dirigindo. E é claro que a gente não precisa se preocupar nem um pouco com a criança que pode atravessar a rua correndo atrás de uma bola bem na frente do seu carro no exato momento que você vira pra pegar a bolsa que estava escondida atrás do banco do carona, eles não falaram mas a gente sabe, no brasil não existe lei, e se acontecer de atropelar a criança, foi mera fatalidade. Culpa mesmo foi da mãe do menino, que deixou ele brincar na rua num mundo violento desse onde vivemos.

Para quem achar que eu estou exagerando, o video:




O especialista em segurança conclui: "com algumas atitudes e mudanças básicas, a gente pode levar uma vida mais segura". Se eu entendi direito, o cara está dizendo que eu preciso me adequar ao mundo violento onde eu vivo. A polícia faz o papel dela de proteger (pelo menos é o que dizem), mas eu preciso evitar ficar no portão da minha casa conversando com a minha vizinha, eu preciso ficar dentro de casa presa para não correr o risco de ser encontrada pelo ladrão que caminha livremente pela rua.

Definitivamente essa foi a coisa mais bizarra que eu já ouvi. Deixar de ter as coisas, deixar de fazer as coisas e andar em alerta o tempo todo, porque se eu não fizer isso, eu certamente serei a principal responsável sobre o que acontecer comigo. Choque de realidade, choque de realidade, choque de realidade...

Mas os dias se passaram, o mês passou e era chegada a hora de voltar. Choque de realidade, eu estava mais uma vez me despedindo da minha mãe, naquela mesma rodoviária, sem dia nem hora pra retornar.

Caminho de volta: lá estava eu outra vez chegando ao aeroporto de Montreal. Foi muito estranho atravessar aqueles corredores puxando a minha malinha, como da primeira vez, com aquele frio na barriga, deixado lá longe minha mãezinha e sem saber direito quando voltaria a vê-la e a abraçá-la. Eu caminhava em direção a saída como quem vivia um dejavú. Mas dessa vez algo estava diferente, pois eu já sabia onde aquele corredor iria dar. Eu já sabia o que me esperava a frente, eu não estava chegando no desconhecido, começando do nada, eu estava apenas voltando.

E voltando renovada, feliz de ver as árvores verdinhas, as flores coloridas, as pessoas sorridentes, a brisa fresca e o sol bem quentinho... feliz da vida com meu estoque de café, mate leão, chocolate nestle, biscoito recheado e outras cositas más... ufa, cheguei! Passei pela imigração sozinha (incluindo a dos EUA), atravessei o continente com minha malinha de comidinhas sem interceptação e cheguei na minha cidade Montreal, completamente renovada pelo verde, menos marrom, menos fria e sem neve na rua! Foi outro choque, mas sem dúvida, esse foi um choque de realidade bem mais tranquilo de se ter...
Quando eu vi aqueles olhinhos de jabuticaba ficando cada vez mais pequenininhos a medida que o ônibus se afastava da rodoviária, não tive dúvidas, a vontade de ficar era bem, bem, mas bemmm maior do que a vontade de ir. Meu coração ficou apertado enquanto as lágrimas insistiam em cair pelo meu rosto. Mal pudia responder as perguntas da senhora que sentava ao meu lado... "muito longe, estou indo para muito longe"... tenho certeza que ela estava tentando me acalmar...

Nessa hora eu entendi bem a teoria da relatividade e o tempo em espiral, como pode um mês passar tão rápido? Parece que foi 1 dia. Fiquei engasgada, soluços e lágrimas teimosas e um desespero no coração que insistia em ignorar a razão e pensava apenas na distância que só crescia bem diante de mim. Quando eu vou voltar aqui e ver a minha mãezinha?

Imigrar não é só enfrentar aquela terrível espera sem fim, chegar no novo país e começar tudo de novo, imigrar é aprender a conviver com a ausência.

Na mala vão poucas coisas. Parte das muitas outras que ficam a gente renega, de outras, desapega, mas outras são impossíveis de viver sem, e essas são as piores, porque são difíceis de embalar ou levar na poltrona ao lado. Para mim, sem dúvida, viver sem minha mãezinha aqui pertinho de mim é a mais difícil. Não tem frio, não tem falta de dinheiro, não tem idioma, não tem desconforto, nem vontade de comer um pastel com caldo de cana que não se resolva, mas substituir o convívio com quem se ama, isso é impossível.

A saudade é a maior das barreiras. As vezes ela é tão grande que dá vontade de gritar, as vezes dói tanto que não dá nem para falar. Mas nada que o tempo não possa curar, e com ele,  a saudade vai encontrando um cantinho ali, só dela, e a gente vai se acostumando, ou pelo menos, aprendendo a conviver com ela.

Mas não só de tristeza foi a minha volta, também foi de alegria. Vontade de ir para a vida que eu construí depois de tanta espera. Aqui estão os 12 meses de Canadá tão intensamente vividos, aqui estão os novos amigos e o novo país que eu descobri e aprendi a amar. Aqui está o meu amor que me recebeu todo bobo com um cartaz de boas vindas no aeroporto. Aqui está a primavera fazendo a transformação da vida bem diante dos olhos de forma mágica, trazendo um raio de sol que agora aquece o rosto e traz de volta o canto dos passarinhos. Aqui onde a vida se transforma, onde a vida acontece.

Aos outros sentimentos e coisas que me fizeram ter vontade de vir, mesmo querendo ficar, eu chamo de choque de realidade, mas como esse blog não é um blog tão poético nem tão pouco filosófico/sentimental, eu deixo essa parte para o próximo post para não estragar esse daqui, que está tão bonitinho, e eu prometo, vai sair bem rapidim.